Realidade e desejo
- rafaelcdorado
- 18 de jul.
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Saramago escreveu em Uma luz inesperada: “O mito do paraíso perdido é o da infância – não há outro. O mais são realidades a conquistar, sonhadas no presente, guardadas no futuro inalcançável. E sem elas não sei o que faríamos hoje. Eu não o sei.”
Afinei meu ouvido por muito tempo à colocação: “É preciso ser realista.” Se, por um lado, tratou-se, para mim, de querer responder à questão sobre o que seria ser um homem, logo, por motivos que não cabe dizer aqui, me identifiquei com a imagem do homem enquanto figura séria, responsável e que olha de frente a realidade, focado, de forma a convergir a realidade em uma só; uma coisa só. Alguns anos de análise demoliram este edifício. Resta saber o quanto da fundação ainda persiste.
Por outro lado, a questão é sobre o que constitui o, ora fino, ora bruto, material da realidade.Para Freud, o devaneio do adulto, a brincadeira da criança e a produção poética têm a mesma raiz. Quando a criança brinca, fantasiando e criando universos imaginativos, há aí a realização de desejos — mais ou menos deslocados e condensados, mas há. Ela realiza o que não está no aqui e agora, seja pela ausência do seu suposto objeto de desejo, seja pela impossibilidade de haver um objeto exato, específico.Dito de outra forma, há no mundo coisas passíveis de oferecer satisfação de desejos dos mais diversos — por exemplo, do desejo por afeto até a vontade de comer uma comida em particular. Contudo, como nos ensina Lacan, o desejo, diferente dos desejos, não possui objeto. Indo um pouco mais, podemos dizer que isso tem a ver com o fato de não haver definição final que dê conta do sujeito.
Cada nomeação, ainda que marque mais ou menos o sujeito, ainda que possa vir a ter funções das mais diversas na vida de uma pessoa, não esgota a experiência da realidade. Haja vista que esta se constitui por três registros, a saber: simbólico, imaginário e real. Lançamos mão de significantes, significados, imagens e discursos — simbólico e imaginário —, ainda assim, o real não se captura; algo escapa.
Voltemos a Saramago, que nos oferece, com o poder de síntese da sua poética, uma verdade e sua força fulgurante. Ele causa beleza por nos entregar algo deixando frestas para que entremos, emprestando algum dizer onde falta.Não seria justamente esta a condição da verdade? Aquilo que se dá, não toda, deixando espaços. A verdade sobre a realidade, o prazer e a infância como mapa do desejo.


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